Música sincronizada com o filme Chuva / Regen (Joris Ivens, 1929) no meu canal YouTube, o link está na minha biografia.
Não me lembro quando vi o Chuva pela primeira vez mas lembro-me do Sério Fernandes falar, de olhos arregalados, de um realizador holandês que passou anos a fazer um filme sobre o vento. Lembro-me de imagens vagas do Regen e do De Brug, e de reconhecer nelas a vontade por trás da câmara de reconhecer os padrões nas formas e manifestações das coisas - a água a correr na borda da estrada e no leito do rio, o vento a fazer dançar as folhas das árvores e as coberturas plásticas das montras, o movimento dos carros, dos barcos, dos guarda-chuvas, do carrinho de bebé. E lembro-me de reconhecer a vontade organizadora por cima da mesa de montagem, e de pensar no Bernstein a ensinar temas, variações, contraponto, orquestração.
Nos primeiros meses de 2019 o Cine Clube estava a preparar Cine-Concertos pela região, com apoios da Rede Cultural Viseu Dão Lafões. A maior parte dos espetáculos estavam programados, com ótimos músicos - o enorme Filipe Raposo, o Noiserv, o Nicholas McNair... - mas ainda faltavam dois. O Rodrigo perguntou-me se não havia alguém em Viseu que fizesse uma música porreira, e eu respondi que eu fazia. A escolha do filme foi por semelhante acaso - ele sugeriu vários clássicos mudos, e eu não cheguei a considerar seriamente nenhum depois de ouvir “Joris Ivens”, se bem que ainda vi uns Griffith que me lembro de ter quase amado há uns anos.
E fiz uma música porreira, sem modéstia. Montei um projector emprestado no meu quarto e procrastinei começar a escrever durante meses - entre dezenas de configurações do quarto, dos ombros, unhas, palhetas, encontrei na procrastinação outras coisas importantes. Não me preocupou a demora em começar, a minha primeira música tinha-se chamado Tempestade, a Chuva não ia ser problema. Não foi - saiu rapidamente, intuitivamente, adequada ao filme, sincronizada até em detalhes. Usei parte do tema da Não é Razoável Esperar (
josepedropinto.bandcamp.com/track/n-o-razo-vel-esperar), e pedaços dessa Tempestade que com o tempo ficaram fora da música (
josepedropinto.bandcamp.com/album/tempestade), e levei-os para outros lados, mais mecânicos, mais insistentes, mais ao ritmo do filme.
O esforço maior foi aprendê-la. Foi a peça mais difícil que fiz até hoje, e durante esse verão tive terríveis dores de pulso por causa da intensidade do treino. Reguei-os com Voltaren, comprei pulsos elásticos, quando há vontade arranja-se maneira. Hoje uso a guitarra com uma afinação mais grave - entre outras razões, por ser mais suave para os pulsos. A vontade não dá impunidade contra o tempo.
A primeira apresentação da Chuva foi na Biblioteca Municipal de Mangualde, antes do Gonçalo Alegre musicar o Lichtspiel Opus I. do Ruttmann e o Emigrante do Chaplin. O Filipe Jesus fez o som. Fiz nota mental de que o microfone era um SM57 - hoje já sei que isso não é o mais importante. Nessa noite toquei muito bem. Esta é a captação dessa atuação ao vivo, gravada no meu computador que deixei escondido atrás de uma cortina do palco.