O mesmo Karma is a Fest que em 2019 me deu duas das coisas mais importantes que já recebi - oportunidade e validação - em 2020 convidou-me a escrever uma peça inspirada nos sons da Mata do Fontelo, Viseu, e que incluísse gravações feitas in loco. A apresentação pública seria no dia 3 de Setembro, no próprio Fontelo.

Escrevê-la foi um processo atribulado. Durante as primeiras semanas estive convencido que seria uma peça maioritariamente improvisada para banjo, instrumento que tinha começado a explorar uns meses antes e pelo qual me apaixonei brevemente em tentativas de imitar o setar do Kayhan Kalhor.

No início de Agosto fui ao Fontelo com um gravador Tascam que o Fipu me emprestou, e a realidade tratou de destroçar as fantasias - a ideia do banjo revelou-se totalmente inadequada, 4 semanas antes do dia de estreia. Naturalmente, seguiu-se a ideia da guitarra de 12 cordas - é um instrumento que domino melhor, e tinha na algibeira algumas ideias escritas durante a quarentena e que ainda não tinham sido publicadas.

Não me lembro em que ponto do processo a música se tornou numa peça para órgão - talvez quando estava a mostrar à minha mãe as gravações do Fontelo, e ela elogiou a junção de sons de água com uns arpejos toscos tocados no belo Skrzatusz do Piotr Grabowski (que é exatamente o que se ouve aos 6:55 da música). O que me lembro é principalmente do cansaço, e de reconhecer no processo a possibilidade de chegar ao fim, com a condição imperativa de não parar de trabalhar.

Acabei de escrever a música na segunda-feira dia 31 Agosto. Nessa altura era mais longa e terminava com um longo solo de guitarra de 12 cordas, que acabou cortado porque senti que retirava coesão à peça (mas que pode agora ser ouvido na Fontellum II). No dia 01 Setembro gravei e editei-a, num dos dias mais cansativos da minha vida. No dia 02 pratiquei e fiz as malas. No dia 03 sofri horrivelmente, nunca estive tão cansado, espero nunca voltar a estar.

Antes de subir ao palco escondi-me no mato a fazer alongamentos e exercícios de respiração. Estava apavorado. O segurança disse-me que compreendia, quando ele jogava à bola também ficava assim. Não me lembro quem me chamou para o palco, mas lembro-me de começar a tocar e olhar para as minhas mãos com uma certeza pavorosa de que não iria chegar ao fim da música.

A gravação da atuação ao vivo está no YouTube, no canal do Carmo'81. Não estou satisfeito com ela, mas estava ciente dos riscos que corria ao levar para um concerto uma música acabada de escrever para um instrumento que não domino. Estou satisfeito por tê-los corrido na mesma.